A diminuição significativa de homicídios no Brasil em 2019 e 2020 é comemorada pelo governo, mas é preciso cautela diante do cenário que levou a estes números.

O atual governo brasileiro tem uma política de incentivo ao uso de armas de fogo e comemora redução de números de homicídios em 2019 e 2020 associando tal diminuição com o aumento de armas de fogo nas mãos da população, ao contrário das medidas restritivas quando da criação, em 2013, do Estatuto do Desarmamento. Este aumento de armas de fogo advém, principalmente, por meio dos registros de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC’s) concedidos pelo Exército, os quais bateram recordes em 2019 e 2020, somando 178.721, quantidade que supera todos os registros liberados nos dez anos anteriores (150.974 de 2009 a 2018), conforme dados obtidos pela BBC News Brasil.¹

A redução de homicídios no país em 2019, que registrou 41.730 mortes violentas e em 2020, 43.892, segundo dados do Monitor da Violência, contrastam com o patamar recorde de 65.602 homicídios em 2017.² As mortes específicas causadas por armas de fogo recuaram do seu ápice de 48.650 em 2017 para 33.136 em 2019, menor patamar desde 1999 (29.938) segundo números do DATASUS, banco de dados do Ministério da Saúde sobre causas de mortes no país. Já em 2020, o número de mortes ocasionadas por armas de fogo foi de 39.000, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021³, gerando o aumento expressivo de 17% de mortes por armas de fogo num intervalo de apenas 1 ano.

Apesar de ter havido diminuição significativa nos números tantos de homicídios quanto nos de mortes causadas por armas de fogo no Brasil, sobretudo em 2019, percebe-se que o percentual está aumentando novamente, mesmo que em proporções diferentes para os homicídios e mortes específicas por armas de fogo. Algo bem significativo é que no ano de 2019 houve uma pandemia com várias restrições de mobilidade advindas de medidas de isolamento social, o que pode ter interferido substancialmente na redução destes números, os quais aumentaram em 2020, ano em que a maior parte da população brasileira já estava vacinada e, portanto, saindo mais às ruas e sem as medidas de isolamentos sociais antes impostas.

É evidente que há outras variáveis que não a pandemia como a trégua entre as grandes facções de narcotráfico em 2018 e 2019, após a guerra que eclodiu em meados de 2016 e seguiu até o final de 2017. Diante do cenário pandêmico, variável excepcional mais significativa até então, deve-se perceber estes dados com uma certa parcimônia de otimismo, principalmente quando associado a maior quantidade de armas nas mãos da população através da flexibilização da criação de uma série de atos administrativos (31 para ser específico) a fim do governo obter o seu intento armamentista junto a população e argumentar como algo positivo armar um civil para supostamente se defender da criminalidade gerada muitas vezes pela abissal desigualdade social que o país apresenta e que o Estado deve combater com mais livros e menos armas e munições.

Em relação aos aludidos atos administrativos letais para a corrida armamentista de parcela da população brasileira, uma das consequências é o acesso a armamentos de forma lícita por parte de dezenas de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CAC’s), os quais integram milícias e grupos de extermínio e estão usando e/ou fornecendo no/para o tráfico de drogas e em sequestros e assaltos, conforme reportagem publicada pelo jornal O Globo em 20/02/2022. Esta informação é elucidativa e ao mesmo tempo revela o perigo de munir civis que podem estar agindo deliberadamente, como na referida reportagem, para construir pequenos exércitos paralelos (milícias) espalhados por todo o país.  Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, a Polícia Federal informava que o Sistema Nacional de Armas (SINARM) continha 637.972 registros de armas ativos em 2017 e ao final de 2020, este número subiu para 1.279.491 – um aumento de mais de 100%, mais que o dobro de registros de armas no curto período de apenas 3 anos (2018-2020).

Ponto essencial na discussão desta redução de homicídios no país é a categoria “Mortes Violentas por Causa Indeterminada” (MVCI), que segundo o Atlas da Violência 2021, “é utilizada para os casos de mortes violentas por causas externas em que não foi possível estabelecer a causa básica do óbito, ou a motivação que gerou o fato.”  

Algo alarmante e não menos preocupante é que os estudos revelam que as MVCI contêm mortes por homicídios não registradas como tais (CERQUEIRA, 2013) e que, em média, 73,9% das mortes por causas indeterminadas registradas no Brasil entre 1996 e 2010 eram homicídios na verdade. Percebe-se que este percentual nada irrelevante obtido por este estudo pode mudar significativamente os atuais dados sobre homicídios no Brasil.

Algo escandaloso que o Atlas da Violência 2021 descortina “é a situação dramática do Rio de Janeiro, em que a taxa de homicídios diminuiu 45,3% em 2019, ao passo que a taxa de MVCI aumentou 237% no mesmo ano. No Rio de Janeiro, em 2019, 34,2% do total de mortes violentas foram classificadas como MVCI.

O Atlas da Violência 2021 também revela que o aumento da taxa de MVCI é coincidente com o período em que a taxa de homicídios no país diminuiu, conforme gráfico abaixo:


Ao considerar o percentual de 73,9% do aludido estudo, caso a proporção de MVCI em relação ao total de mortes violentas fosse a mesma, e considerando que em 2019 o número de MVCI foi de 16.648, haveria cerca de 12.302 homicídios a mais do que os registrados em 2019, ou seja, ao invés de 41.730 seriam, na verdade, 54.032 homicídios; nesta mesma toada comparativa tomando como parâmetro o mesmo estudo citado, em 2020 o número de MVCI foi de 11.916, o que elevaria o número de homicídios de 43.892 para 52.697, ao levar em consideração os números de mortes violentas de 2019 e 2020 do Monitor da Violência. No entanto, os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021 possuem um total de “Mortes Violentas Intencionais” (MVI) maior do que os obtidos no Monitor da violência, o que elevaria ainda mais se inserirmos como parâmetro o estudo (CERQUEIRA, 2013).

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, o número de MVI de 2019 foi de 47.742, e seguindo o parâmetro do referido estudo, o número de mortes violentas seria de 60.044 e o de 2020 seria de 58.838 MVI ao invés de 50.033 mortes violentas intencionais.

Outra pesquisa, agora desenvolvida por John J. Donohue (Universidade de Stanford), Abhay Aneja (Universidade da Califórnia) e Kyle D. Weber (Universidade de Columbia), considerada uma das pesquisas mais aprofundadas sobre este assunto, estimou que a taxa de crimes violentos aumentava entre 13% e 15%, em dez anos, nos estados norte-americanos que possuíam legislações flexíveis ao acesso às armas de fogo. Apesar dos EUA ser um país que é muito citado nestas questões sobre armas de fogo nas mãos de civis com maior flexibilidade para aquisição, é claro que cada vez que acontece tragédias de assassinatos em massa em escolas, shows, universidades, o que gera grande comoção nacional, há muitas pessoas que se manifestam contra as atuais medidas de flexibilização e buscam que o Congresso e os Estados da Federação sejam mais restritivos nesse ponto elaborando normas condizentes com o clamor da sociedade norte-americana.

Em suma, armar a população com argumentos que boa parte de estudos científicos de credibilidade apresentam como questionáveis, para dizer o mínimo, é forçoso a fim de obter interesses outros como fomentar a indústria de armas, por exemplo, independente dos números de mortes ocasionadas por armas de fogo aumentarem a cada ano, salvo algumas situações excepcionais como a pandemia do Covid-19.

 

REFERÊNCIAS


¹Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56075863#:~:text=Segundo%20dados%20obtidos%20pela%20BBC,150.974%20de%202009%20a%202018).
³Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf

⁶Disponível em: https://www-cdn.law.stanford.edu/wp-content/uploads/2017/06/Donohue_et_al-2019-JELS-RTC-Law-and-Viol-Crime.pdf

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